Ex-ministra da Agricultura do governo Bolsonaro vai presidir comissão e relator da nova lei do licenciamento será responsável por mais dois pareceres sobre o assunto. Entenda a tramitação dos projetos

A comissão mista que vai analisar a Medida Provisória (MP) 1.308/2025, que trata da Licença Ambiental Especial (LAE), uma nova modalidade de licenciamento simplificado e acelerado, foi instalada na tarde desta terça-feira (23) no Senado.
Por um acordo entre governo e oposição, a senadora Tereza Cristina (PP-MS) foi eleita presidente e o deputado Zé Vitor (PL-MG), o relator. Após a escolha dos dois cargos, Cristina encerrou a sessão.
Nessas funções, os dois parlamentares terão controle quase total sobre a tramitação e o conteúdo da MP, a exemplo do ritmo e tempo de discussão, alterações no texto e interlocutores privilegiados. Além disso, embora possa haver ainda mudanças pontuais, a composição do colegiado ficou francamente favorável aos ruralistas.
Vítor e Cristina estão entre principais responsáveis pelo teor da nova lei sobre o licenciamento ambiental (15.190/2025). Ele foi o relator do projeto de lei (PL) 2.159/2021 em sua última passagem pela Câmara, em julho. Ela foi a autora da versão final aprovada no Senado, em maio.
A senadora é uma das mais influentes e radicais ruralistas do Congresso. Foi ministra da Agricultura do governo Bolsonaro e ficou conhecida como “menina veneno” por sua defesa do uso indiscriminado dos agrotóxicos no debate da lei aprovada pelo Congresso sobre o assunto em 2023. Ela não quis falar com a reportagem do Instituto Socioambiental (ISA) na saída da sessão.
O PL 2.159 ficou conhecido como “PL da Devastação” por prever o desmonte do sistema de licenciamento ambiental no país, e em função das possíveis consequências de sua aprovação. A indicação dos dois parlamentares sinaliza para a defesa da retomada do texto da proposta.
Licença Especial
A MP foi enviada pelo governo ao Congresso após os vetos parciais do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao “PL da Devastação”, em agosto.
Na avaliação dos ambientalistas, Lula vetou retrocessos importantes da nova lei. De quase 400 dispositivos, 63 foram vetados completa ou parcialmente. Desse total, 26 itens foram simplesmente excluídos.
Apesar disso, ainda segundo as organizações da sociedade civil que acompanham o assunto, a legislação e a MP mantêm problemas. Para elas, o maior retrocesso do pacote é a LAE, tema específico da medida.
Ela permite simplificar e acelerar o licenciamento de obras e atividades econômicas complexas, de grande impacto ambiental, como a extração de petróleo, a construção de hidrelétricas ou a pavimentação da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho), numa das regiões mais preservadas da Amazônia.
Além disso, conforme a MP, poderiam ser alvo desse tipo de licença empreendimentos considerados “estratégicos” por um conselho do governo, o que abre caminho para que pressões políticas e econômicas prevaleçam no processo em detrimento da análise técnica. Especialistas também apontam o aumento do risco de corrupção.

De acordo com uma análise do Observatório do Clima (OC), foram apresentadas mais de 830 emendas à medida e quase três quartos do total pretendem reintroduzir itens vetados por Lula. Cerca de 80% das propostas representam retrocessos ambientais.
“A Licença Ambiental Especial dificilmente será aperfeiçoada. Ela não deveria existir. Pode-se aceitar a priorização dos processos pelo governo, o que já ocorre na prática. Mas agilizar empreendimentos com alto potencial de impacto é inverter a lógica estabelecida pela Constituição, que prevê tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental”, avaliou Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do OC.
A proposta foi incluída no "PL da Devastação" no Senado pelo presidente da casa, Davi Alcolumbre (União- AP). Ele estaria interessado em acelerar a exploração de petróleo na Foz do Amazonas, o que beneficiaria seu estado. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) permitiu o avanço da licença para um dos empreendimentos da Petrobras na região na véspera da votação no plenário, depois de meses de pressão de Alcolumbre e do próprio presidente Lula.
A própria publicação da MP, que tem vigência imediata, foi vista como uma deferência ao parlamentar, considerado um aliado pelo Palácio do Planalto. Entre assessores parlamentares, a expectativa é que a medida seja aprovada com certa facilidade por causa do interesse do senador, dos ruralistas e do próprio governo.
Embora passe a valer desde sua publicação, a medida precisa ser analisada em até 120 dias. Depois de passar pelo colegiado formado por deputados e senadores, precisa ser apreciada nos plenários das duas casas legislativas. O prazo vence em 5 de dezembro.
PL e vetos
Depois dos vetos, o governo também enviou um PL (3.834/2025) com urgência constitucional para suprir lacunas na nova legislação. Por acordo entre governo e oposição, Zé Vítor também foi escolhido o relator na Câmara.
O projeto foi enviado há 45 dias ao Congresso e passou a trancar a pauta do plenário da Câmara nesta terça. Depois de votado, segue para o Senado.
Como se não bastassem essas ameaças ao licenciamento (considerando a correlação de forças desfavorável aos ambientalistas no Legislativo), os vetos de Lula também precisarão ser analisados numa sessão do Congresso (composta por deputados e senadores). Ainda não há data marcada para isso acontecer, no entanto
“O acordo de entrega das duas relatorias para um mesmo deputado, que foi responsável pelo texto que hoje é lei e contém mais de 63 vetos, significa mais um passo para que a disputa sobre o licenciamento não se encerre tão rapidamente e siga para o Judiciário”, analisa Alice Dandara de Assis Correia, advogada do ISA.
“Não temos dúvidas de que retrocessos vetados serão retomados no PL ou na MP. Isso significa que teremos um feito inédito: o veto do que já foi vetado em uma mesma sessão legislativa” disse.

Imbróglio e anistia
Na verdade, o que pode transformar a MP numa questão é sua negociação combinada com a de outras pautas. Ela acabou entrando no maior imbróglio político do Congresso dos últimos meses: a disputa em torno do projeto bolsonarista de anistia aos golpistas de 2022 e 2023.
O PL 3.834 converteu-se num dos obstáculos para a votação da proposta ao começar a trancar a pauta do plenário da Câmara. Como já se tornou tradicional com a agenda ambiental, a prerrogativa de retirar ou não o regime de urgência constitucional do projeto tornou-se então uma moeda de troca. No caso, o objetivo do governo seria impedir a análise do perdão aos golpistas e, de quebra, votar a isenção do Imposto de Renda (IR), tema de interesse direto do Planalto.
Para tentar liberar o caminho para a votação da anistia, apoiados pelos bolsonaristas, os ruralistas ameaçaram com a possibilidade de votar o PL 3.834 ainda nesta terça, com uma redação que retoma a maior parte do texto original do “PL da Devastação”. Zé Vítor chegou a dizer que os governistas estavam se negando a discutir o assunto.
Durante o dia, a pergunta entre organizações da sociedade civil era o que o governo faria, sob o risco de mais um desastre no tema do licenciamento. “Temos de trabalhar com a hipótese de que o projeto seja votado hoje”, chegou a dizer um deputado petista.
Se a urgência fosse retirada, as atenções se voltariam à MP, com um pouco mais de tempo para negociações, conforme a avaliação original dos ambientalistas. Já à noite, veio a informação de que o governo pediria a retirada da urgência e que a anistia não seria votada nesta terça.