Encontro entre comunidades do Brasil e da Colômbia pactua diretrizes para preservação do peixe e do caraná, com base em conhecimentos ancestrais e práticas de cuidado com o território
A Canoita, encontro de troca de conhecimentos, comunicação e monitoramento territorial, mobiliza comunidades indígenas da região do rio Tiquié — entre Brasil e Colômbia — desde o início dos anos 2000. Realizada entre os dias 5 e 8 de maio, a edição de 2025 reuniu cerca de 120 participantes em São Pedro (ou Mopoea), do lado brasileiro do rio, para aprofundar os debates iniciados no ano anterior, em Bellavista de Abyú, na Colômbia.
O foco do encontro foi a pactuação coletiva de novos acordos de manejo do peixe — recurso central e cada vez mais escasso — e do caraná, palmeira usada para cobrir as malocas, onde saberes e práticas ancestrais para o manejo do mundo são abrigados e transmitidos entre gerações.

Os acordos fazem parte de um plano traçado na Canoita do ano passado, onde estão previstas ações focadas em conhecimentos ancestrais e manejo ambiental, direitos das mulheres, gestão do lixo e comunicação. À frente dessa articulação estão a ATRIART (Associação das Tribos Indígenas do Alto Rio Tiquié) e o COITERTI (Consejo Indígena del Territorio del río Tiquié), com apoio do ISA (Instituto Socioambiental) e da Fundación Gaia Amazonas.
Leia também
Reencontro Canoita: indígenas do Brasil e da Colômbia discutem plano de manejo integrado
Como preparação e consulta às comunidades sobre os acordos, uma oficina em novembro de 2024 em Cachoeira Comprida, do lado brasileiro do Rio Tiquié, elaborou temas e propostas sobre formas de manejo da piracema, dos lugares sagrados, do uso timbó, do lixo e das artes e técnicas de pesca.
Mediada pelas lideranças tuyuka José Ramos, de São Pedro, e Jorge Lima, de Bellavista de Abyú, a Canoita contou com momentos de contextualização e histórico da iniciativa, grupos de trabalho organizados por trechos de rio e associações, plenárias e debates feitos sobretudo em Tuyuka e Tukano com traduções resumidas em português e espanhol.
Embora o foco principal tenha sido a pactuação e compromisso com os acordos de manejo ambiental de peixes e caraná, a troca de experiências foi um dos marcos do encontro. Pelo lado brasileiro, foram rememoradas as iniciativas realizadas pelos agentes indígenas de manejo ambiental (AIMAs), escolas e movimento indígena viabilizadas principalmente por meio de projetos socioambientais nos últimos 20 anos.
Já do lado colombiano, ganharam destaque as experiências das AATIs (Associações de Autoridades Tradicionais Indígenas), que atuam como formas próprias e autônomas de governo, além das iniciativas voltadas à valorização e articulação dos sistemas tradicionais de conhecimento.
Resumidamente, os acordos definem os locais onde deve se restringir ou proibir a pesca sistematizados em um mapa[MOU1]. Também, indicam práticas de conhecimento indígena que devem ser procuradas, orientam como respeitar a piracema, como utilizar o timbó e quais são as formas que técnicas não tradicionais, como malhadeiras, devem ser empregadas para que não sejam predatórias nem agravem a escassez de peixe em uma região com poucos peixes.

Em relação ao caraná, cujas folhas são tradicionalmente utilizadas como cobertura das casas e das malocas, os acordos estabelecem formas de uso que garantam a regeneração dessa palmeira e respeitem o manejo tradicional realizado pelas gerações anteriores. Outro ponto abordado foi o compromisso com a construção de estratégias para lidar com os resíduos sólidos, como pilhas, baterias e plásticos, que têm se tornado presença crescente nos territórios.
As pilhas e baterias ganharam destaque nas discussões. Conforme aumenta o consumo de eletrônicos e a conscientização em relação ao descarte adequado desse tipo de resíduo, aumenta também seu acúmulo em tambores e carotes, o que tem criado um enorme desafio legal e logístico nas terras indígenas do Rio Negro. De acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, fabricantes de pilhas e baterias deveriam ser “... obrigados a estruturar e implementar sistemas de logística reversa…” (Lei 12.305 Art 33) , o que ainda não acontece no Alto Rio Negro.
Para que os acordos não se tornem apenas mais um documento entre tantos, os participantes ressaltaram a importância de sua implementação cotidiana, enraizada nas práticas vividas e compartilhadas pelas comunidades, famílias e escolas.
Com ampla experiência de mobilização, interlocução com burocracias não indígenas e construção de instrumentos próprios de planejamento — como os Planos de Vida, na Colômbia, e os Planos de Gestão Territorial e Ambiental, no Brasil —, as comunidades de ambos os lados da fronteira destacaram que a efetividade dos acordos depende da valorização contínua das boas práticas de manejo tradicional e do envolvimento direto das pessoas que habitam e cuidam do território.
Afinal, não se trata de realizar uma vigilância e punição ativa de quem não respeitar os acordos. Conforme colocado, sob forma de provocação bem humorada da liderança Raimundo Tenório, ninguém vai querer ser o vigia do rio enquanto a comunidade está em festa. Mas, as comunidades indicarão pessoas de referência que registrarão os pontos que serão avaliados periodicamente pelas comunidades e organizações indígenas e parceiras.
Seguindo a rota traçada com a retomada das Canoitas no ano passado, dois novos encontros já estão previstos para o segundo semestre de 2025. Com diretrizes temáticas definidas, serão protagonizados por coletivos de mulheres e conhecedores tradicionais das comunidades do Tiquié, e terão como foco os direitos e os papéis das mulheres, além da proteção dos sítios sagrados. Assim continua a jornada da peri yokosorogã — a pequena canoa, em tuyuka — navegando por essas águas e paisagens cuidadas, há milênios, por quem delas faz morada e conhecimento.
*Esta reportagem foi produzida com apoio da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD)