No Julho das Pretas, depoimentos revelam a potência da beleza como mecanismo de sobrevivência
No dia 25 de julho é celebrado internacionalmente o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. A data foi instituída em 1992, no I Seminário Internacional de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe, em Santo Domingo, República Dominicana. No Brasil, foi adicionado à celebração o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. A marcação é um importante reconhecimento da luta, liderança, resiliência e contribuição das mulheres negras para a nossa sociedade.
Tereza de Benguela foi uma liderança quilombola no século XVIII, do Quilombo do Quariterê, na região onde hoje fica Cuiabá (MT). Ela é uma referência na busca pela liberdade de seu povo e até hoje inspira e transmite sua força ancestral por meio de suas descendentes. O Julho das Pretas é uma oportunidade não apenas de relembrar a existência da Rainha Tereza, mas de enxergá-la e honrá-la valorizando cada uma de nossas mulheres negras.
E como bem aponta a liderança do Quilombo Sítio Veiga (CE), Ana Maria Eugênia, “Pensar no Julho das Pretas é também abordar a questão da beleza da mulher quilombola, da mulher preta, da mulher periférica, da mulher das águas e das florestas”.

Espelho partido
Para muitas mulheres negras, a relação com a própria imagem pode ser uma questão sensível. “É muito difícil falar isso de beleza externa, porque a sociedade coloca que a mulher bonita é a mulher branca, de olho gateado, dos olhos verdes, loira. Então você não consegue se ver neste lugar”, comenta a liderança Tarciara dos Santos, do Quilombo Santa Tereza do Matupir (AM), que sonhava em ser modelo e desfilar em passarelas quando criança.

“Historicamente a gente é taxado como feio, o nosso cabelo é tido como feio, nosso corpo é tido como feio, o nosso sorriso, nossos lábios”, complementa Ana Maria Eugênia. Por muito tempo, o espelho, por exemplo, foi um lugar de ausência para muitas mulheres negras quilombolas. Uma superfície silenciosa que não refletia beleza, afeto ou pertencimento.
“Eu sempre tive dificuldade de tirar foto minha, sempre tive dificuldade de usar maquiagem, de usar um batom, passar uma base. Sempre tive muita dificuldade com o espelho, pelas discriminações, pelos racismos que a gente sofre por ser mulher negra e quilombola, por acharem que somos inferiores, que não devemos estar em determinados espaços, que não devemos nos arrumar. Às vezes não nos sentimos belas, não nos sentimos bonitas”, compartilha Célia Pinto, liderança do Quilombo Acre (MA).
Espelho reconstruído
Reparar os danos e feridas do racismo não é tarefa fácil, mas também não é irremediável. Por meio de iniciativas que colocam essas mulheres no centro da própria história, esse reflexo começa a mudar. Através de um ensaio de fotos promovido pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), algumas lideranças tiveram a oportunidade de ser representadas exatamente como são, bonitas, com seus traços e cores valorizadas, contando a sua história e a de seu quilombo.
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“Não é só sobre o empoderamento da mulher quilombola, mas também de como nós lutamos com os nossos corpos”. Para a liderança Marleide do Nascimento, do Quilombo Mato Alegre (CE), “quando você traz a visibilidade, quando você traz nosso olhar a partir da fotografia, com esse sentimento de pertencimento, com os elementos que nos representam, nos faz também mostrar para outras pretinhas, outras quilombolinhas, que o corpo delas fala, que o olhar fala, que as expressões falam, que cada olhar, cada gesto é extremamente importante. Isso me deixou muito emotiva, porque nós conseguimos nos olhar e nos ver com outra perspectiva, não só do sofrimento”.
As fotos revelam o quanto autoestima e dignidade andam juntas e que a reconstrução da própria imagem é necessária para um processo de cura e fortalecimento dessas mulheres. “Tive um sentimento de liberdade, de valorização e isso me deu um grande empoderamento”, relata Berenita dos Santos, do Quilombo Ganga Zumba (AL).
“Enquanto mulheres negras, agricultoras, quilombolas, esposas, mães, avós, lideranças, que têm o dia a dia cheio de tarefas e ocupações, não conseguimos ver realmente quem somos, como somos. [O ensaio] foi um momento muito rico, valioso, porque conseguimos nos ver de outra forma, ver que somos capazes, mesmo que através de imagens”.

E imagem também é poder, também comunica. Como apontado pelo sociólogo e jornalista Muniz Sodré em seus estudos, muitos esteriótipos racistas que foram perpetuados ao longo dos anos são consequência da forma como a mídia representou os corpos negros.
“Quando vemos nossas histórias contadas através de lentes que valorizam nossa essência, conseguimos romper com estereótipos que muitas vezes nos excluem. As imagens falam sobre nossas vivências, clamores por justiça e sorrisos que, apesar das adversidades, continuam a brilhar!”, celebra Kátia Penha, do Quilombo Divino Espírito Santo (ES).

“Através dessas representações, somos convidadas a expressar não apenas nossa beleza externa, mas também nossas histórias internas, as lutas diárias, os amores que nos fortalecem e as dores que nos moldam. Cada olhar profundo nas fotografias carrega um universo de significados, um testemunho da nossa trajetória e da riqueza de nossas identidades”.
“Pra mim foi muito importante esse momento, porque a gente se vê, e na medida que a gente se vê, a gente passa a se amar, a se valorizar, a conhecer de fato a nossa beleza. A gente consegue deixar nossa marca registrada”, reforça Maria Rosalina, do Quilombo Tapuio (PI).
Beleza quilombola
A força simbólica de uma imagem bem construída não está apenas na estética. Para muitas delas é também sobre coletividade, memória e ancestralidade. “Cada mulher preta é um quilombo”, como escreveu Selma Dealdina, no livro Mulheres Quilombolas: Territórios de Existências Negras Femininas.
Para Fabiana Vencezlau, do Quilombo Conceição das Crioulas, por exemplo, o mais impactante é poder representar sua comunidade.
“Antes da minha imagem, a imagem do quilombo, porque eu só sou o que sou, graças ao quilombo. A gente não conta só a nossa história. Quando a gente vai, a gente não vai sozinho, a gente vai com todas as nossas representatividades, não só as físicas, mas também as representatividades ancestrais, que sempre nos acompanham e que nos guiam aonde quer que a gente vá”.



Quem compartilha do mesmo sentimento é Alessandra Bernardino, do Quilombo Itapocu (SC). “Eu vivi um momento que marcou a minha história. Foi mais que posar para uma câmera fotográfica, foi me reconhecer, me ver representada, enxergar minha beleza e a de tantas outras mulheres que carregam a força e a resistência do nosso povo, principalmente do nosso povo quilombola. Ver as imagens depois foi como olhar no espelho, enxergar não só a mim, mas todas as que vieram antes, principalmente da minha comunidade”, enfatiza.

Em cada depoimento é possível perceber a superação de violências silenciosas, a reconstrução do olhar sobre si mesma e a afirmação coletiva de que beleza quilombola existe, resiste e precisa ser celebrada.
Monique Guerreiro, do Quilombo Caranã Dubá (PA), lembra da força contida em cada detalhe. “Uma foto pode mostrar o quanto somos belas, resilientes e vitoriosas. Um sorriso, um olhar sereno, diz que estamos vivas e que sobrevivemos.”